O mito da beleza interior
“O mais profundo é a pele”
–Paul Valéry
Na adolescência, me orgulhava por dissociar beleza interna e beleza externa. Eu pensava que poderia ter nascido com qualquer rosto, que minha mente era uma coisa separada e que estava acoplada ao meu corpo por puro acaso. Eu mal prestava atenção à minha corporalidade e, por efeito, olhava os outros como tendo um corpo, não como sendo um corpo. Eu não me sentia um corpo e por isso buscava abstrações e sentimentos etéreos nos outros. “Beleza interior” era um tema recorrente, principalmente nas minhas tentativas de conquista. Nada melhor do que valorizar a beleza interior diante de uma menina absurdamente linda, não é mesmo?
Depois de muito tempo, paralelamente ao meu retorno ao corpo por meio da polirritmia, um insight veio à tona: beleza é sempre exterior. Não, eu não poderia ter outra face, outra voz ou outro jeito de andar. À medida que mudo, minha voz muda, meus traços se alteram, meus trejeitos manifestam minha mente. Experimente olhar para qualquer pessoa e perguntar: “Ela poderia ter outra voz que não essa? Outra cara que não essa?”. Quanto mais conhecemos alguém, mais respondemos com um objetivo “Não”.
Ainda que a beleza provenha de qualidades subjetivas, tal interior não só é exterior a nós como se exterioza no corpo do outro em gestos, palavras, faces e olhares. Dada uma certa configuração cognitiva e emocional (um mundo interior), não é qualquer corpo que vai surgir. É como se não houvesse sequer uma união entre corpo e mente, como se de fato nunca tivesse existido separação alguma. Um só ser que se expressa e com o qual nos relacionamos em diferentes linguagens: sons da voz, redes de pensamentos, fluxos emocionais, toques da pele, luminescências da imagem. Corpo e mente não são duas substâncias e tampouco uma. Não dois, não um.
Eis a razão para a completa integração dos cinco sentidos, como se eles fossem um só órgão perceptivo que usasse várias membranas para captar diferentes camadas de estímulos e vibrações: ouvido para som, olhos para luz e assim por diante. O filósofo Maurice Merleau-Ponty, que estudou detalhadamente o fênomeno da percepção, afirmou: “Nenhuma experiência humana se limita a um dos cinco sentidos. Os sentidos se decifram uns aos outros”.
Em nosso cotidiano, não vemos o corpo com atenção. Ignoramos a corporeidade e ultrapassamos a pele, o que é fácil. Bundas perfeitas, ombros delineados, costas que atestam virilidade, bocas que nos provocam… Cada parte do corpo é vista tal qual um objeto inerte, como se a alma estivesse em outro lugar. Mais ainda, cada parte do corpo nos leva para fora, para nosso desejo ou para a investigação da mente ali escondida: “Quem é ele?”. Justamente devido a esse equívoco, perdemos acesso ao próprio corpo e ganhamos apenas superfícies artificiais em nosso campo sensorial. Não haverá diferença entre a bunda da revista e aquela da mulher na nossa frente enquanto buscarmos pela alma em outro lugar, enquanto pensarmos que o espírito está escondido.
Ficar no nível da pele é que é raro. Não precisar tirar os olhos das pernas para ver a alma. Lembrar, a cada instante, que uma pessoa não tem um corpo, é um corpo; que a mente não fica dentro da cabeça, mas na barriga, no pescoço, mãos e tornozelos. Saber que todos estamos nus, completamente acessíveis o tempo todo. Criar relações com os poros, sem precisar ir para outro lugar. Ver a face do outro como necessária, não contingente (“não poderia ser de outro modo”), faz com que comecemos a amá-la, assim como ficamos felizes quando percebemos que nosso passado não poderia ter sido diferente, caso contrário não seríamos o que somos – experiência que Nietzsche chamou de amor fati.
Aquele que é considerado “feio” muitas vezes toma como refúgio a noção de beleza interior sem saber que ela é uma armadilha que consolida e toma como natural sua suposta falta de beleza. Ora, nada falta ao cego pois é de sua natureza não ter olhos! O feio assim nos parece porque estamos procurando algo que não é dele, como se tentássemos, sem sucesso, projetar nossos desejos de beleza em seu rosto, quando deveríamos apenas olhar e receber o que ele tem a oferecer.
As conexões humanas acontecem de acordo com nossos condicionamentos: alguns seres causam aversão em uns e apego em outros. Aquele que nos parece horroroso é desejado por outra pessoa. Um homem aborígene não é nojento em si mesmo pois se o fosse não seria procurado por uma mulher de sua comunidade para uma noite de sexo.
Sem a noção de beleza interior, a natural beleza de todas as aparências é revelada. A profunda alma do mundo está na superfície: tudo é luminoso, nítido, vivo.
A estética como cura da anestesia
“Nothing can cure the soul but the senses”
–Oscar Wilde
Em uma palestra sobre a percepção estética e sobre como nos relacionamos com as obras de arte, o crítico e professor Jorge Coli falou sobre écfrase, a atitude de “deixar a obra de arte falar”, enxergá-la e descrevê-la como ela surge, sem significações adicionais, opiniões ou o clássico “gosto / não gosto”. Segundo ele, com essa prática, a obra nos revela muito mais do que poderíamos suspeitar a princípio, e transborda significados muito mais profundos do que aqueles que rapidamente nela projetaríamos. Em vez de entrar para nossa coleção de objetos, encaixotada em nosso espaço interior, a obra de arte abre nosso corpo, expande nosso mundo.
Cada vez que Jorge Coli pronunciava “obra de arte”, eu ouvia “pessoa” (confesso que a palavra exata era “mulher”) e imaginava como seria uma relação de écfrase mútua. Na verdade, isso é bastante simples. Por generosidade, chegamos ao outro e dizemos: “Não vou sair daqui nas próximas horas, me mostre seu melhor”. Porque essa frase nunca de fato sai em palavras, ela não tem a pressão que aparenta carregar. Qualquer pessoa adora quando tem espaço para se mostrar, para exercitar suas qualidades, jogar seu charme, ter sua beleza admirada. O outro quer ser usufruído, quer se oferecer inteiro.
O que deixa bonita e irresistível cada parte do corpo do outro não são apenas seus próprios traços ou seu entorno, mas o modo como ela se oferece a nós. A boca, bonita nela mesma, fica ainda mais bonita se vista em relação ao queixo, nariz, bochechas, pescoço e os fios de cabelo que invadem os lábios; e totalmente bela quando pede por nosso toque, se abre e chama nossa própria boca.
Para liberar a beleza do outro, não basta saber olhar, ouvir, cheirar, tocar ou lamber. É preciso abrir espaço e convidá-lo a se oferecer a nós. Você se lembra da felicidade e do prazer que sentiu quando enfim conseguiu soltar suas qualidades diante de alguém? Ora, quer presente melhor do que deixar seu parceiro sentir o mesmo? Muito melhor do que oferecer é possibilitar o espaço para que o outro ofereça. Eis a generosidade insuperável: deixar que o outro seja generoso. Desse modo, ainda que ambos recebam, o foco, a energia e a felicidade estão em oferecer.
Na verdade, o que acontece por trás da generosidade é um processo de abertura e descentramento. Quando o foco está em receber, ironicamente nosso corpo se fecha e continuamos insatisfeitos – nunca conseguimos receber o suficiente. Onde não há generosidade, brota carência. No corpo que se fecha, as experiências dos cinco sentidos se empalidecem. Anestesiados, somos capazes até de matar pois quando não sentimos aumentamos o contato com o outro até o machucarmos. Por não vivenciarmos dor em nosso corpo, causamos dor aos outros.
O sintoma mais comum de um casal em crise é a anestesia mútua. Cada parceiro se torna incapaz de realmente se abrir e sentir o outro. Além disso, fica quase impossível olhar o outro em traços puros, sem que cada gesto ou olhar nos remeta a incontáveis lembranças e sensações aflitivas. A ausência de écfrase é inseparável do esquecimento da generosidade: perdemos a disposição em dar crédito, dar tempo, dar espaço, dar respeito, dar nascimento ao outro. Na falta de generosidade, nenhuma beleza é possível. Aquele ser bonito que nos atraía se transforma em um monstro que agora nos causa nojo e aversão.
Sem que precisemos analisar e reconfigurar o conteúdo da crise, sem resolver os vários problemas que causaram a apatia, podemos atacar diretamente a anestesia. Em vez de pensar ou conversar (como pode existir diálogo sem abertura?), usamos o corpo. Anestesia é falta de estesia. Simples assim. No entanto, o que sentiria um corpo doente se lhe retirassem os anestésicos? O maior impedimento à abertura é o fato de que ela inicialmente será uma abertura à dor. Fruir uma obra de arte é fácil, mas ninguém quer ter uma sensação estética da dor. Por isso, à medida que a crise piora, aumentamos a dose de morfina, sem saber que estamos nos distanciando ainda mais da solução.
Sofrer, contudo, não libera o sofrimento. Vamos sentir nossa própria dor apenas para que possamos sentir a dor do outro. De fato, elas são uma e mesma coisa. Ao focar em como liberar a dor do outro, já estamos operando com generosidade. Já estamos abertos e alegres pelas pequenas alegrias que causamos. Com esse espaço, ele novamente solta suas qualidades, seu charme. Não é por acaso que o outro volta a ficar bonito e a nos atrair. Generosidade dá tesão… Ignoramos as demandas de nosso autocentramento e simplesmente nos abrimos. Caso contrário, vamos perder muito tempo pedindo e buscando por aquilo que nossa contração nos faz desejar. Muito mais fácil se conseguirmos dissolver o autocentramento, raiz de nossos problemas.
E então, durante a crise, sem respeitar regras e coerências, empurramos o outro para baixo do chuveiro. Em meio a brigas constantes, desânimo e intolerância, nenhum dos dois toparia tomar banho juntos, assim, do nada. Mas nosso corpo, por mais que relute, deseja o toque. Com a água correndo, deixamos que a mão, não a mente, faça o trabalho. E confiamos na sabedoria natural do outro corpo para expor sua dor. De novo, o mesmo processo: ele vai soltar o que tiver e nós abraçamos o que vier. Até que a dor cesse e ele siga oferecendo sua arte, que é o que sabemos fazer melhor.
Por hoje é só!
Por hoje é só!
Que o GADU esteja com vocês!
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